O tema mais recente do noticiário polÃtico e econômico é a suposta inclinação dos ministros do Tribunal de Contas da União a rejeitar as contas da presidenta Dilma Rousseff no ano passado, quando o governo precisou fazer aquela complexa engenharia polÃtica e financeira para não cair na teia da Lei de Responsabilidade Fiscal.
O assunto, em época de ferozes acirramentos ideológico-partidários (legÃtimos e saudáveis num sistema democrático sadio, ressalte-se), sempre acaba servindo como um elemento a mais para debates acalorados nas timelines, mesas de boteco e, claro, bastidores do poder. Neste caso, alimentando duas linhas básicas de raciocÃnio, a de quem é contra e a de quem é a favor da presidenta e do PT:
1) Eventual parecer negativo do TCU poderia trazer, enfim, a justificativa técnica que falta para o impeachment
2) Eventual parecer negativo do TCU seria só mais um indicativo de conspiração polÃtica da direita “coxinha†e “golpista†contra os representantes do povo no poder
Temas transversais
Ocorre que os pontos mais importantes a serem debatidos, nesta questão, aparecem como temas transversais, e não na discussão central. Ora, as maquiagens e pedaladas do Tesouro Nacional para fechar suas contas e fugir da Justiça são mais do que perceptÃveis (e há longo tempo, aliás), não é preciso ser um técnico do TCU, um advogado da Advocacia Geral da União ou um especialista em finança pública para perceber isso.
Qualquer cidadão com um mÃnimo de informação sobre o contexto em que vive é capaz de perceber que, sem o tira daqui/arruma ali do balancete oficial a equação das contas públicas não fechariam no zero. Constatação simples, de quem administra orçamento familiar e sabe que, se gastar mais do que recebe, vai faltar dinheiro no fim do mês, as dÃvidas vão subir e uma hora ou outra a coisa vai estourar. O único caminho para evitar que isso aconteça é a pessoa parar de gastar mais do que tem no bolso, não há outra alternativa. Não adianta apenas justificar o gasto, alegando que gastou mais com feijão e arroz do que com vinho e cerveja, a ordem dos fatores não altera o produto, de forma que só interessa o resultado final da operação.
Revisão
Por isso o mais importante a ser debatido em torno deste novo assunto é o mecanismo de funcionamento e acompanhamento das contas públicas. Casos como este mostram que está mais do que na hora de se fazer uma revisão das leis orçamentária e fiscal, assim como do papel dos órgãos de fiscalização, como o TCU. Principalmente no sentido de se tornar mais objetiva e eficiente a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Em relação ao Orçamento da União, é indispensável que se estabeleça mecanismos legais complementares para coibir mudanças de regra tão bruscas como as do ano passado. Não é possÃvel, e muito menos tolerável, que o regulamento de uma competição seja alterado momentos antes do término da disputa. Isso é uma afronta a qualquer noção mÃnima de bom senso.
É mais ou menos como se você assinasse o contrato de compra de um televisor e depois a loja onde fez a compra modificasse uma cláusula alterando o valor do produto, ou as condições de pagamento. Na votação do Orçamento de 2014, os deputados aprovaram uma coisa para depois voltar atrás e aprovar outra, conveniente apenas para uma da partes, no caso o Executivo Federal. Definitivamente, não é natural, nem tampouco saudável, que isso aconteça. Se a peça orçamentária precisa de certa flexibilidade para absorver os imprevistos e desafios da gestão pública, que essa flexibilidade seja melhor regulamentada. O que não se pode é permitir tais nÃveis volubilidade na condução da máquina pública.
"Pedalada" ou "Migué"?
Também é preciso disciplinar melhor as ferramentas de execução do Orçamento e reduzir a margem para o artificialismo da contabilidade oficial. Tome-se como exemplo o caso da “pedalada†– que, em linguagem mais popular, poderia ser chamada de “miguéâ€. O governo usou os bancos oficiais para pagar benefÃcios como Bolsa FamÃlia, Minha Casa Minha Vida e Seguro Desemprego e depois não devolveu o dinheiro. Lembrando que os recursos disponÃveis no cofre de um banco não são dele, são dos correntistas, das pessoas e das empresas que deixam suas divisas depositadas ali. Então, a princÃpio, o Tesouro está devendo esse dinheiro não para o banco estatal, mas para seus clientes, que são também cidadãos brasileiros. DÃvida bem considerável, aliás, de nada menos que R$ 40 bilhões.
Fica evidente, portanto, que as ações de assistencialismo e paternalismo estatal, por exemplo, assim como tantas outras, precisam ser melhor enquadradas do ponto de vista fiscal e financeiro. Ativos bancários não podem servir de capital para este tipo de polÃtica pública – tão intimamente ligada ao mecanismo de tutela eleitoral, a propósito. O governo, se quiser distribuir benefÃcios ao povo e ao eleitor, que o faça com seu próprio dinheiro, não com os ativos financeiros da sociedade – até porque ela já entrega grande parte de seus esforços ao Erário, através do pagamento de impostos.
Carreira x indicação
Outro aspecto importantÃssimo a ser considerado neste debate é a forma de composição do Tribunal de Contas, que precisa ser um órgão absolutamente independente e exclusivamente técnico. Não parece ser muito conveniente, e muito menos estratégico, que o relator das contas da União em 2014 seja um ex-deputado federal que chegou ao Tribunal por indicação da Câmara. É inclinação polÃtica demais para quem exerce uma função de proeminência tão técnica. Papel de tal importância cairia bem melhor para um especialista qualificado, quem sabe um PHD em finança pública, talvez um notável do universo contábil. Ao olhar frio da lógica, o perfil menos adequado para o posto parece ser o de um ex-deputado federal, por mais bem intencionado e insuspeito que seja ele. Afinal, polÃtica, razão e independência raramente andam de mãos dadas, todos sabem muito bem disso. Daà a importância de se privilegiar mais a carreira do que a indicação na composição de um órgão com a importância do Tribunal de Contas.
Reciclagem
Que o Brasil aproveite este momento de palpitação polÃtico-ideológica para repensar a si mesmo e para reciclar seus métodos. O paÃs precisa de muito mais do que um impeachment ou de uma sequencia de projeto no poder. Precisa de reformas profundas, de realinhamentos de gestão, de aprimoramentos de competência e conduta dos órgãos e dos gestores públicos. É isso que salvará a nação do abismo, não a troca de A por B, ou de seis por meia dúzia. É preciso trocar de paradigma, de foco, de objetivo.
E o quanto antes, diga-se de passagem, pois num futuro não muito distante poderá ser tarde demais. Acordemos todos nós, pois, e reciclemos nossas reivindicações na hora de ir para a rua. Isso pode unir ainda mais o pais, fortalecer ainda mais a democracia e trazer resultados muito mais sensÃveis para o cidadão. Pensemos nisso.