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COMPREENSÃO DOS FATOS VAI ALÉM DA IDEOLOGIA
Segunda-Feira, 19 de Junho de 2017

OPINIÃO DO ANÁLISE

Querer entender o que está acontecendo no Brasil a partir de uma ótica puramente ideológica, fundamentada na divisão entre esquerda e direita, é puro simplismo. Por mais que variáveis originadas na ideologia interfiram no processo, é muito difícil e até improvável que a gênese dos fatos esteja ligada apenas a uma luta de classes ou visões de mundo. Considerando isto, torna-se bastante arriscado dizer que a sociedade está silenciosa diante das atitudes condenáveis do presidente da República simplesmente porque o objetivo dos movimentos sociais de outrora era tirar o PT e a classe trabalhadora do poder. Tal conclusão, de caráter visivelmente simplista, pode levar a uma cegueira de convicções que impedirá o país de encontrar seu verdadeiro rumo.

Objetivamente, o que determina os níveis de satisfação de uma sociedade em relação a um projeto administrativo são os resultados que ele produz. Se os cidadãos tiverem a sensação de que as coisas vão bem, de que o hoje está melhor do que o ontem, de que a vida mudou para melhor, dificilmente negarão apoio a quem quer que seja. Se o país estiver como o cidadão quer, ele não dará nenhuma importância ao posicionamento ideológico do presidente da República e de seu partido. Se são de direita ou de esquerda, de centro, do alto ou de baixo, pouco importará. Esta noção daquilo que é ou não bem-estar social, por sua vez, está muito ligada ao aspecto econômico: se há emprego, renda e capacidade de consumo, o país vai bem; do contrário, vai mal.

Talvez este seja exatamente o grande problema do Brasil: a cada surto de desenvolvimento, geralmente nada sustentável, acredita-se que as coisas estão resolvidas e o Primeiro Mundo enfim chegou, para depois se perceber que isso não era verdade e as coisas estavam bem piores do que pareciam. Já em momentos de crise aguda com este, que já dura quase três anos, ocorre o mesmo mas de forma inversa, com as pessoas acreditando que, se as coisas pararem de piorar, é porque o caminho foi encontrado.

Medo

No momento atual, é bem provável que o medo de ver as coisas piorarem justamente no momento em que começavam a melhorar esteja freando qualquer iniciativa popular de insurgência contra o poder. É, no mínimo, uma hipótese das mais plausíveis. Afinal, boa parte dos indicadores econômicos vem mostrando uma reação do mercado, com retomada na geração de empregos, juros e inflação em baixa e retorno do crédito. Associando este cenário à possibilidade de volta ao cenário anterior, a sociedade parece estar fazendo uma opção bem clara: deixar as coisas como estão para não piorarem.

Entre adeptos de esportes radicais como o vôo livre, por exemplo, usa-se o termo “cristalizar” para definir momentos em que a pessoa deixa o medo ou a euforia “congelarem” seu raciocínio, impedindo-a de tomar decisões corretas e provocando acidentes, muitas vezes graves. No caso dos brasileiros hoje, é possível que o medo de voltar à realidade recente os esteja impedindo de perceber que já é chegada a hora de ir às ruas para protestar novamente. Se o objetivo da mobilização social dos últimos anos era combater a corrupção, precisa continuar, sob pena de se perder mais uma oportunidade de transformar o Brasil.

Euforia

Há dez anos, a sociedade cometeu o mesmo erro, deixando-se “cristalizar” à época pela euforia. Como o país parecia bem em função da febre do consumo, esqueceram que era preciso reformar o Brasil por dentro e por fora para que aquele salto não fosse só mais uma tentativa frustrada de pular sobre um precipício sem ponte.

Neste contexto, o que menos importa neste momento são as motivações que levaram a Polícia Federal e o Ministério Público a flagrar o presidente Michel Temer tratando de assuntos para lá de comprometedores em situação para lá de comprometedora. Em uma república parlamentarista ele dificilmente ainda estaria no cargo. A estabilidade da economia precisa ser obtida e as reformas propostas pela atual gestão são todas muito importantes para isso, mas elas pertencem ao Brasil, não a Temer ou qualquer outro agente político. São iniciativas que podem, e devem, seguir adiante seja quem for que esteja no governo.

O que não pode é ter à frente da nação alguém cuja conduta no poder mereça tantos questionamentos do ponto de vista ético e moral. Se ele caiu em uma armadilha e quem armou esta armadilha, a esta altura dos fatos, é o que menos importa. O importante é que fica muito difícil confiar em alguém que diz para manter o pagamento de propina a um sujeito, como fez Temer na conversa com o empresário Joesley Batista, recomendando que este mantivesse a "mesada" destinada a Eduardo Cunha.

Cálculo

A título de nota de rodapé, não como justificativa mas como elemento de análise, vale observar que, na conta do povo, deve pesar também a comparação. Quando o sujeito calcula quanto foi desviado na gestão anterior (embora sejam as mesmas) com o montante dos trambiques na atual, fica com a sensação de que a corrupção diminuiu, embora isso não seja verdade. Ela pode ter ficado, no máximo, mais difícil. Além disso, não se compara valores quando se trata de coisas ilegais, pois quem rouba R$ 1 é tão ladrão quanto quem roupa R$ 1 milhão.

Por isso seria importante que, em vez de buscar desculpas para dar legitimidade ao que não é legítimo, a população fosse novamente às ruas, para deixar claro que lugar de corrupto é na cadeia ou fora da política. Senão vai ficar parecendo que a corrupção pode ser tolerada dependendo do tipo de corrupto ou da situação em que ele é pego. Não podemos “cristalizar” novamente, senão daqui a pouco não “descongelaremos” nunca mais.




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